Coluna #15: Mercadores do Ódio

Numa manhã no verão de Las Vegas de 2019, um policial avistou Byron Williams pedalando em uma estrada próxima ao centro – ainda não havia amanhecido, e ele pedalava sem nenhum tipo de luz de segurança, o que é proibido. O oficial ligou as sirenes de sua viatura e pediu que parasse, mas ele fugiu. Foi capturado pelos policiais, que usaram suas mãos e joelhos para prendê-lo. Por dezessete vezes, repetiu “I can’t breathe” (não posso respirar, em português), antes de desmaiar e falecer.

Recentemente, as palavras foram repetidas por George Floyd, que morreu de maneira muito parecida em Minneapolis. O fato reacendeu as tensões raciais nos Estados Unidos e comoveu o mundo. Mesmo no meio da pandemia, multidões tomaram cidades ao redor do mundo pedindo igualdade racial. “I can’t breathe”, repetiram as multidões.

Os protestos foram, em sua maioria, ordeiros. Mas houve episódios de violência, especialmente em Minneapolis. O presidente Donald Trump se indignou contra o fato de que esses criminosos não estavam sendo combatidos com a força que julgava necessária, e postou em suas contas em mídia social que se os governadores não agissem, ele mesmo tomaria conta da situação: “quando o saque começa, o tiroteio começa”.

A frase foi controversa, porque foi uma citação direta de um chefe da polícia e de um político segregacionista utilizada no contexto da repressão às revoltas raciais de 1967. O Twitter, em resposta, tomou uma medida anteriormente impensável: escondeu a postagem do presidente dos Estados Unidos, alertando os usuários de que a comunicação violava sua política de uso ao glorificar a violência.

Isso tudo reacendeu um debate bastante atual nos Estados Unidos, especialmente em períodos eleitorais. Dado que grande parte do debate mundial ocorre nas mídias sociais, especialmente no Facebook e no Twitter, o quanto essas mídias devem ser responsáveis pelo conteúdo publicado em suas redes?

Relembremos o modelo de negócios dessas plataformas: quanto mais tempo um usuário passa em suas redes, mais espaço pode ser vendido para os anunciantes. Desta forma, as redes otimizam a experiência do usuário para que ele fique o maior tempo possível na plataforma. Quanto mais engajado, melhor. E nada engaja tanto quanto controvérsia – especialmente se envolve “fake news”. Se tem alguém ganhando dinheiro com a polarização política extremada das sociedades atualmente, são as novas mídias. A média de tempo que um adulto passa nas mídias sociais, de acordo com dados da consultoria eMarketer, é de 2 horas e 22 minutos por dia.

O debate público rapidamente evoluiu para exigir que essas plataformas fizessem mais para impedir a divulgação de informações questionáveis em suas redes. Afinal, se nada fizessem, estariam basicamente lucrando a partir da incitação ao ódio. E se tudo isso era verdade, de nada adiantava essas plataformas divulgarem campanhas inspiradoras, dizendo que “Vidas Negras Importam”, ao mesmo tempo que nada faziam para combater a incitação à violência e o discurso de ódio que fluía livremente em suas plataformas.

E foi aí que o modelo de negócios das mídias sociais rapidamente se voltou contra elas mesmas. O debate público em suas próprias plataformas começou a exigir que as marcas deixassem de gastar dólares com seus anúncios lá – especialmente no Facebook, e na sua controlada, o Instagram. E uma campanha de boicote começou.

Uma agência de propaganda digital, a 360i, enviou e-mail aos seus clientes pedindo adesão a um boicote ao Facebook ao longo do mês de julho. “Qualquer plataforma social que lucra amplificando as vozes de sua comunidade precisa ter uma política de tolerância zero para o ódio”, disse em comunicado. Empresas como Unilever, Verizon, Adidas, Starbucks, Coca-Cola, Ford e HP se comprometeram a não gastar nas plataformas do gigante das mídias sociais, algumas estendendo o congelamento até o fim de 2020. O papel chegou a perder mais de 70 bilhões de dólares, em valor de mercado, ao longo de três dias.

A base de clientes de propaganda do Facebook é extremamente diversificada – dos 8 milhões de clientes, os 100 maiores representam menos de 20% das receitas desta linha – mas se o movimento contagiar empresas menores, o dano pode acabar se tornando material. O movimento mostra que, na era das redes sociais, o controle da narrativa é essencial. O tribunal da Internet está pronto para julgar bons e maus, e a máquina de engajamento das mídias sociais pode voltar-se contra seu próprio criador.

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