Zeitgeist 2022 – Parte 5: Criptoinverno

 

Em novembro de 2021, o mercado total de criptoativos chegou a valer três trilhões (com um “t” mesmo) de dólares. O sentimento de euforia era manifesto: os preços do bitcoin e do ether estavam em suas máximas históricas, celebridades vendiam NFTs pelo Instagram, e grandes estádios esportivos eram adornados com os logotipos de bolsas digitais.

Felipe Neto passou a vender NFTs baseadas na blockchain Hathor através da plataforma 9Block.

                Em 2022, essa fase encerrou. Ao longo do ano, os preços de diversos ativos cripto caíram mais do que 50%, os volumes de negociação desapareceram, e diversas empresas anteriormente prestigiosas foram à bancarrota em crises de liquidez. O valor total do mercado cripto encerrou o ano valendo cerca de 800 bilhões de dólares (desta vez, com um “b” mesmo).

Não é a primeira vez que isso acontece nesse mercado, e cada queda no passado precedeu um novo pico alguns anos depois. Da última vez, as criptomoedas foram vilipendiadas por supostamente facilitarem apenas transações ilegais. Em 2022, o problema foi de outra natureza, como veremos a seguir.

A dimensão e o alcance da destruição desta vez, no entanto, foram muito superiores. Conforme essa classe de ativos capturou a atenção das instituições financeiras tradicionais e dos reguladores, mais e mais investidores passaram a participar desse grande ciclo de alta, desatentos aos riscos.

Se muito mais gente participou da festa, hoje tem muito mais gente de ressaca também.

“Meu objetivo é causar impacto”. (Proféticas palavras de Sam Bankman-Fried, fundador da FTX, a maior bolsa de criptomoedas a quebrar neste ano)

Em 2018, um coreano arrojado chamado de Do Kwon criou uma moeda, consagrada como sua “maior inovação”. Em incontáveis tuítes e entrevistas, Do Kwon proclamou a quem quisesse ouvir o potencial transformador de sua invenção, a Luna, arregimentando um grupo de investidores e apoiadores. Eram os “Lunatics” – um exército muito animado de investidores e entusiastas.

Do Kwon em 2022, relaxando em seu escritório em Seul.

                Sua empresa, a Terraform Labs, levantou mais de 200 milhões de dólares em aportes para financiar projetos alicerçados no inovador “ecossistema Luna”. O valor total da moeda chegou a mais de 40 bilhões de dólares, empolgando de day-traders a grandes investidores institucionais.

“Não debato com os pobres”. (Do Kwon, respondendo a quem se mostrava reticente diante de tamanha empolgação)

Em 2020, a Terraform Labs passou a oferecer a sua própria stablecoin: um tipo de criptomoeda que é pareada com uma moeda fiat, e que não flutua de valor. A ideia é ter uma moeda na qual quem negocia em criptoativos possa ficar “estacionado”, sem ter que converter para Reais ou Dólares, o que confere agilidade, conveniência e anonimidade.

A stablecoin de Do Kwon era chamada TerraUSD. Um TerraUSD iria sempre valer um dólar. Não foi a primeira moeda desse tipo – a mais popular de todas, e só um pouco menos controversa, chama Tether – mas tinha uma característica diferente. A estabilidade TerraUSD/USD era garantida por algoritmos que acabavam conectando seu valor ao de Luna. Era um mecanismo complexo, sobre o qual não entraremos em detalhes neste texto. Tipicamente, as outras stablecoins são (aliás, deveriam ser) garantidas por ativos financeiros reais e auditáveis.

“Isso é muito mais perigoso do que pegar uma nota do tesouro americano e tokenizá-la. É a receita para que algo de ruim aconteça”. (Charles Cascarilla, CEO da Paxos, uma emissora de stablecoins)

A resposta de Do Kwon, acima: “what the f*ck is Paxos”.

               Naturalmente, as previsões mais pessimistas se materializaram. O algoritmo se provou incapaz de frear a perda da paridade do TerraUSD com o Dólar. Isso provocou uma crise de confiança em todo o ecossistema Luna – só nas duas moedas, as perdas foram de mais de 40 bilhões de dólares. Fortunas invejáveis foram transformadas em pó.

As consequências para milhares de investidores de varejo foram catastróficas. Um popular fórum no Reddit, com 44 mil membros, recebeu tantos relatos de pessoas que haviam perdido tudo (ou até mais) que os moderadores postaram no topo da página o telefone de linhas de serviços locais de prevenção ao suicídio ao redor do mundo.

“Eu devia ter vendido tudo quando a moeda estava a 100 dólares, e então eu teria 25 mil dólares. Mas eu me senti ousado esperando ganhar mais dinheiro para pelo menos ser capaz de dar a entrada para uma casa para minha família. Acho que agora não tenho nem casa, nem poupança.” (“No-Forever”, apelido de um usuário do Reddit)

Memes coletados quando a queda de Luna ainda era de apenas 97%.

                Do Kwon está hoje foragido das autoridades e dos investidores de Luna, que tentaram arrombar suas residências em Seul e na Singapura. Aparentemente, decidiu se refugiar na Sérvia.

Além das milhares de tragédias individuais, todo o mundo cripto foi tomado de surpresa. Se um projeto do tamanho da Luna, com todo esse capital injetado e a confiança emprestada pelos investidores institucionais, era vulnerável, o que dizer dos outros projetos? Não sem razão, a indústria foi tomada por um choque de descrédito, e os demais projetos passaram a ser examinados sob um olhar mais crítico. Muitos investidores passaram a desejar a antiga estabilidade das finanças tradicionais, e uma correção maciça de cerca de 300 bilhões de dólares afligiu a indústria.

Pouco tempo depois, surgiu mais uma vítima. A Celsius Network, um cripto-banco, começou a apresentar problemas de liquidez. Cerca de dois meses após o colapso da Luna, a Celsius foi forçada a um pedido de recuperação judicial em Nova Iorque. Até hoje os usuários que tinham recursos na plataforma, que remunerava depósitos em taxas altas, mas tinha um claro descasamento entre ativos e passivos, não receberam nem parte do seu dinheiro de volta. Uma auditoria externa publicou, posteriormente, que o “buraco” no balanço patrimonial da companhia era de 1,3 bilhão de dólares.

Antes de ser declarada insolvente, a Celsius procurou parceiros que pudessem salvá-la. Rumores à época davam conta de que Sam Bankman-Fried (apelidado de SBF), o fundador de uma das maiores bolsas de cripto dos Estados Unidos, a FTX, estava interessado na companhia, mas acabou decidindo não prosseguir com os negócios.

FTX Arena, estádio do Miami Heat, que havia cedido os naming rights para a empresa. O time está procurando um novo patrocinador.

               Algumas semanas (e outras bancarrotas) se passaram, e o drama do universo cripto parecia estar chegando ao fim. Outro cripto-banco, a BlockFi, tinha apresentado problemas. Mas a FTX decidiu resgatá-la, fortalecendo os boatos de que era uma das empresas mais financeiramente sólidas do setor.

Infelizmente, nem os boatos e nem os balanços da empresa de Sam eram particularmente robustos. Um artigo publicado pela imprensa especializada em novembro apontou preocupações importantes envolvendo a alavancagem e a solvência da FTX e de sua filial, a Alameda Research. Na sequência, a Binance (uma bolsa rival) liquidou todos os seus tokens da FTX, provocando uma crise de liquidez severa e tornando evidentes os problemas da concorrente.

“Eu ainda não acho que tive tanta influência. Acho que nosso movimento foi apenas a gota d’água. Uma porção de coisas se acumularam até que a situação chegasse a este ponto, e talvez o que fizemos foi apenas a última coisa que levou a isso”. (Changpeng Zhao, CEO da Binance, sobre a quebra da FTX)

Num lance surpreendente (será?), os ativos da FTX acabaram sendo oferecidos à própria Binance. O mítico CEO da maior bolsa de cripto do mundo considerou a oferta – até conseguir ter acesso aos números. Olhou para os registros contábeis, ponderou sobre potenciais acusações criminais, e desistiu do negócio. Era o fim.

Sam Bankman-Fried, sendo conduzido para testemunhar às cortes

              Sam renunciou ao cargo de CEO, e nomearam a John Jay Ray III para ocupar o cargo. John é um advogado especializado em reestruturação, e foi quem gerenciou o colapso da Enron em 2001.

“[Eu nunca vi] uma falha tão grotesca de controles corporativos, em todos os níveis, em uma organização. [A FTX estava sendo gerida por] um grupo muito pequeno de indivíduos extremamente inexperientes e incompetentes”. (John J. Ray III, novo CEO da FTX, em depoimento às cortes)

O novo presidente da empresa listou uma série de “práticas inaceitáveis de gestão” como relatórios financeiros não-confiáveis e “a falta de governança independente” entre a FTX e a Alameda Research. Também denunciou os antigos gestores por fraude, pela utilização de um software para esconder o uso impróprio de fundos de terceiros. As autoridades americanas acusaram Sam de ter desviado bilhões de dólares para benefício pessoal.

“Enquanto ele gastava despudoradamente em espaços de escritórios e condomínios nas Bahamas, e perdia bilhões de dólares de clientes em investimentos altamente especulativos, o castelo de cartas de Bankman-Fried começou a desmoronar”. (Acusação da SEC, a CVM americana)

SBF terminou sendo extraditado das Bahamas, de onde operavam os palácios corporativos da FTX, e preso nos Estados Unidos. No fim do ano, pagou uma fiança de 250 milhões de dólares para permanecer em prisão domiciliar na casa de seus pais na Califórnia.

Depois de um ano tão turbulento, governos ao redor do mundo estão mais ágeis do que nunca em colocar o universo cripto sob escrutínio cada vez mais intenso. O mercado que irá surgir dessas cinzas certamente será mais robusto do ponto de vista de regulação. Resta saber se existem mais problemas debaixo da superfície.

“Estamos em um ponto profundamente existencial para a indústria. Até onde vai a podridão?” (Yesha Yadav, professor de direito na Vanderbilt University)

Referências

[1] ‘Crypto winter’ has come. And it’s looking more like an ice age. (https://www.washingtonpost.com/business/2022/12/18/crypto-winter-ftx-collapse-bitcoin-prices/)

[2] How a Trash-Talking Crypto Founder Caused a $40 Billion Crash (https://www.nytimes.com/2022/05/18/technology/terra-luna-cryptocurrency-do-kwon.html)

[3] Luna Crypto Crash: How UST Broke and What’s Next for Terra (https://www.cnet.com/personal-finance/crypto/luna-crypto-crash-how-ust-broke-and-whats-next-for-terra/)

[4] ‘I lost my life savings’: Terra Luna cryptocurrency collapses 98% overnight (https://finance.yahoo.com/news/lost-life-savings-terra-luna-160848125.html)

[5] Is Do Kwon a fugitive? What happened to the founder of Terra (LUNA)? (https://youngplatform.com/en/blog/news/what-happened-terra-luna-founder-do-kwon-after-allegations/#:~:text=A%20few%20days%20later%2C%20the,Do%20Kwon%20was%20a%20fugitive.)

[6] Celsius Acknowledges $1.2B Hole in Balance Sheet (https://www.coindesk.com/business/2022/07/14/celsius-acknowledges-12b-hole-in-balance-sheet/)

[7] Binance’s CZ on FTX: ‘We were the last straw that broke the camel’s back’ (https://techcrunch.com/2022/11/17/binances-cz-on-ftx-we-were-the-last-straw-that-broke-the-camels-back/)

[8] Who is John J. Ray III, FTX’s new chief executive? (https://www.nytimes.com/2022/12/13/technology/john-j-ray-iii-ftx-chief-executive.html)

[9] Sam Bankman-Fried Released on $250 Million Bond With Restrictions (https://www.nytimes.com/2022/12/22/business/sam-bankman-fried-ftx-bail.html)

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