Coluna #07

Mea culpa e os efeitos de segunda ordem

O último artigo que escrevi (link aqui) sobre o Covid-19 dizia que, provavelmente, isso não precipitaria o início de uma correção mais séria. Recentemente se tornou claro, no entanto, que a epidemia não ficaria restrita a China. Surgiram focos na Coreia do Sul, no Irã e na Itália, e até no Brasil já existem casos de transmissão local. Os mercados reagiram violentamente, cedendo de patamares elevados, e o S&P 500 teve no fim de fevereiro o pior desempenho semanal desde a segunda guerra mundial – uma queda de 11,5% em cinco pregões.

Os efeitos de primeira ordem da epidemia são pontuais – conforme as pessoas não saem de casa em um primeiro momento, alguns setores são afetados de forma mais aguda, como o turismo. Se uma quarentena é estabelecida, parte do consumo é postergada, mas outra efetivamente deixa de acontecer. Essa atividade econômica perdida prejudica a sociedade, mas tende a ser pouco relevante em horizontes mais longos de tempo.

O problema mais sério ocorre quando a interrupção da atividade econômica permanece por um período prolongado, colocando em risco a solvência das empresas. As companhias continuam tendo que honrar compromissos firmados com seus funcionários, fornecedores e credores, mesmo que não estejam conseguindo operar por um evento de força maior. E então começam os efeitos de segunda ordem.

O Covid-19, aparentemente, não tem uma taxa de fatalidade muito alta. Mas pessoas mais frágeis, aquelas que sejam idosas ou tenham alguma condição preexistente, são muito mais vulneráveis do que a população em geral. O mesmo é verdade para as empresas. A Flybe, uma companhia aérea britânica, anunciou nesta semana sua falência, cancelando todos os voos. Já em sérias dificuldades financeiras há alguns anos, teve seu fim decretado quando um fornecedor de combustível cortou sua linha de crédito, o que levou os aeroportos a apreenderem seus aviões. Pode ter sido apenas a primeira vítima.

Quando uma empresa vai à falência, toda sua cadeia de fornecedores e credores deixa de receber e tem que arcar com as consequências. Os empregados perdem sua renda, e a cadeia de consumo da qual participam – educação, varejo, entretenimento, entre outros – também sente os efeitos. Economias saudáveis são capazes de absorver muitos choques, mas cada evento deprime, pouco a pouco, sua resiliência. A partir de certo ponto, o ciclo de eventos negativos supera essa capacidade de absorção, e uma crise mais profunda pode ser instalada. São esses os efeitos de segunda ordem.

A economia global, hoje, tem algumas vulnerabilidades. A política de liquidez empreendida pelos Bancos Centrais desde a crise de 2008 reduziu muito o custo do dinheiro. Com taxas de juros extremamente deprimidas, e empresas sendo capazes de receber juros para tomar dinheiro emprestado, a quantidade de dívida global fez novos recordes. De acordo com o IIF (Institute of International Finance), o estoque de dívida sobre o PIB global atingiu, no 3º trimestre de 2019, o nível de 322%, o mais alto da história. São 253 trilhões de dólares de empréstimos.

Apesar de os juros estarem em patamares muito baixos, uma crise prolongada poderá fazer com que os mercados de crédito não estejam mais dispostos a emitir novas dívidas para os devedores, alongando os vencimentos atuais. Caso a atividade econômica permaneça em níveis deprimidos por conta da epidemia, algumas empresas podem ter dificuldades em honrar os pagamentos de juros. E com o estoque de dívida bastante elevado (e particularmente alto no setor não-financeiro, mais vulnerável à parada das linhas de suprimento vindas da China), isso pode precipitar uma crise financeira nos setores mais frágeis da economia.

Parece razoável esperar um controle gradual da epidemia, e de que as economias globais consigam resistir à eventuais choques advindos de medidas de controle como quarentenas. As notícias mais recentes da China apontam para alguma normalização da atividade local. Uma eventual paralização mais prolongada, no entanto, poderá tornar evidentes vulnerabilidades na economia global, com consequências duradouras. Assim como entre a população, é prudente ficar especialmente atento aos setores mais vulneráveis.

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