Zeitgeist 2022 – Parte 3: Twitter, Musk e Liberdade

A ideia que veio a conceber o Twitter surgiu em 2006. Em uma sessão interminável de brainstorming, um universitário chamado Jack Dorsey teve uma abstração: e se fosse possível que alguém mandasse um SMS para um grupo de pessoas, ao invés de para um único indivíduo? Um produto inicial foi lançado no mesmo ano.

“Encontramos a palavra ‘twitter’, e foi simplesmente perfeito. A definição era algo entre “um breve fluxo inconsequente de informação” e “sons de aves”. E isso é exatamente o que o produto era”. (Dorsey)

Jack Dorsey em 2009.

Em 2007, durante uma conferência chamada South by Southwest Interactive, o time do Twitter instalou duas telas de plasma de 60 polegadas nos corredores principais do evento, que mostravam apenas o feed da rede social. Os conferencistas gostaram da proposta e começaram a se comunicar através de lá. A popularidade do site explodiu: de 20 mil tuítes diários antes do evento, eram 60 mil por dia na sequência.

“Gostaríamos de lhes agradecer em 140 caracteres ou menos. E acabamos de fazê-lo!” (Mensagem da Conferência, ao conceder ao Twitter o prêmio da categoria)

A importância do Twitter foi crescendo gradativamente. No começo de 2010, os usuários já postavam mais de 50 milhões de tuítes por dia. Em 2022, algo como 500 milhões de tuítes foram enviados todos os dias, a partir de 368 milhões de usuários. Inicialmente atendendo a um nicho, o Twitter se tornou peça fundamental na conversação global.

Estimativas de usuários do Twitter por país (em milhões). O Brasil está logo atrás da Índia, apesar da população quase 7x maior do país asiático.

Esse fenômeno não aconteceu apenas com o Twitter. Como um conduíte para a comunicação global, as mídias sociais foram gradativamente se tornando a arena onde acontecia o debate público. Isso foi facilitado por elas mesmas, afinal todas, de uma forma ou de outra, operam em um sistema de publicidade. Quanto mais pessoas de interesse público estiverem nessas plataformas, maior será o tráfego. E quanto maior o tráfego, mais caro será o espaço disponibilizado à propaganda.

O Twitter é uma plataforma aberta e de fácil interação, e por isso acabou absorvendo os políticos com bastante facilidade. Dois fatores ajudaram bastante: (i) o sistema de verificação, que foi lançado já em 2009, e resolveu alguns problemas de confiança, e (ii) o time interno do qual a empresa dispõe, que ajuda usuários famosos a entenderem o que funciona ou não em termos de engajamento.

Foi em 2009, nos Estados Unidos, que um magnata famoso se cadastrou e foi verificado. Naquele ano, ele postou pouco: cerca de um tuíte a cada 5 dias. Gradativamente, foi tomando gosto pela plataforma. Em 2013, tuitou em média mais de 20 vezes por dia. Em 2016, foi eleito presidente dos Estados Unidos, contrariando todos os prognósticos.

Trump tuitando durante discussão com os governadores na Casa Branca, em junho de 2020.

O fato do presidente dos Estados Unidos tuitar diretamente – muitas vezes sem suporte de uma equipe de relações púbicas, que tornaria os tuítes mais “estéreis” – desafiou diversas convenções políticas e de segurança. A conta de Trump no Twitter foi hackeada duas vezes pelo hacker holandês Victor Gevers. Em ambas ocasiões, a senha era fraca e a autenticação de dois fatores estava desativada (a título de curiosidade, as senhas eram “yourefired” e “maga2020!”).

Em termos de conteúdo, o presidente frequentemente tuitava ideias controversas. Por vezes, não se sabia se o que Trump escrevia era uma política oficial dos Estados Unidos (como quando o presidente ameaçou destruir a Coreia do Norte). Noutras vezes, as informações publicadas eram sabidamente falsas. Em outras ocasiões, os tuítes foram interpretados como um incentivo à violência.

“Quando o saque começa, o tiroteio começa”. (Tuíte de Trump, durante alguns protestos pouco ordeiros que tomaram os Estados Unidos na sequência do assassinato de George Floyd)

A mídia tradicional e parte da sociedade civil já se manifestavam há alguns anos, exigindo que as mídias sociais passassem a moderar mais duramente o que era publicado em suas redes, e que banissem usuários que publicassem alguns tipos de conteúdo. A eleição de Trump em 2016 fez com que essa demanda se tornasse cada vez mais audível.

O termo ‘fake news’ – popularizado pelo próprio ex-presidente – se tornou onipresente no debate público. Quem deveria decidir quem pode ou não pode frequentar a internet? Banir alguém do Twitter ou do Facebook, no contexto atual, não significaria efetivamente cercear sua liberdade de ser ouvido, e, por conseguinte, de se expressar?

“Acordei de mal humor e decidi bani-los da Internet. Tendo tomado essa decisão, agora precisamos conversar sobre porque ela é tão perigosa. Eu literalmente acordei de mal humor e decidi que alguém não deveria ser permitido na internet. Ninguém deveria ter esse poder”. (Matthew Prince, presidente da Cloudfare, após ter banido a hospedagem de um site neo-nazista).

Eventualmente, o próprio Trump foi banido do Twitter. Sob imensa pressão, a empresa julgou que o ex-presidente havia efetivamente incitado os ataques ao Capitólio que ocorreram em 6 de janeiro de 2021, e que a permanência da sua conta poderia facilitar outras manifestações violentas no futuro. Trump ainda era presidente quando foi banido, o que tornou essa decisão particularmente controversa.

Manifestantes atacam o capitólio em janeiro de 2021

A polêmica era evidente: o Twitter decidiu banir a conta do presidente dos Estados Unidos por incitação à violência, enquanto a conta do líder supremo do Irã, Aiatolá Ali Khamenei, continuava de pé. O aiatolá frequentemente clamava pela eliminação de Israel na plataforma. A rede foi acusada de aplicar dois pesos e duas medidas, e de ser particularmente partidarizada contra os Republicanos e outras forças mais à direita no espectro político.

Conforme o Twitter começava a intensificar sua moderação de conteúdo, os Republicanos ficaram cada vez mais contrariados. Sentiam que a rede só tinha olhos para eles, enquanto a esquerda passava “impune”. A plataforma, então, chamou a atenção de outro magnata: Elon Musk.

Em março de 2022, Musk perguntou a seus seguidores se eles achavam que o Twitter aderia ao princípio de que a liberdade de expressão era essencial para uma democracia funcional. 70% dos votantes disseram que não.

A partir de então, uma série de acontecimentos se sucedeu: o fundador da Tesla e da SpaceX revelou em abril que já tinha comprado 9% das ações da companhia. Pouco tempo mais tarde, fez uma oferta: estava disposto a comprar o Twitter por 43 bilhões de dólares, ou USD 54,20 por ação.

“Eu investi no Twitter porque acredito em seu potencial para se tornar a plataforma para a livre expressão no mundo todo, e acredito que a liberdade de expressão é imperativa para uma democracia funcional”. (Musk, justificando sua aquisição)

Depois, voltou atrás. Passaram algumas semanas e Musk afirmou que o acordo estava suspenso enquanto ele não fosse capaz de auditar os dados da plataforma quanto ao número de usuários que eram robôs ou contas falsas. Em julho, disse que a empresa não tinha colaborado com os dados, e cancelou a oferta.

Gangorra de preços provocada pela oferta de Elon Musk

Mas a proposta já tinha sido feita e o Twitter resolveu litigar a decisão. Depois de muito tumulto, a companhia sentia que tinha argumentos suficientes para forçar a aquisição. Foi à justiça americana e exigiu que a oferta fosse concluída nos termos iniciais. A batalha jurídica se estendeu por alguns meses, Elon amarrou formas de financiar a aquisição e, em outubro, adquiriu a companhia. As ações do Twitter deixaram de ser negociadas na bolsa de Nova Iorque, e a empresa se juntava às demais no portfólio do homem mais rico do mundo.

A partir do comando de Musk, a empresa passou por mudanças intensas. O novo controlador disse que identificou uma série de ineficiências, e relatos apontam que cerca de 5 mil funcionários do Twitter foram demitidos desde a troca de comando – essa cifra representa 2/3 do total. Elon acusou funcionários antigos de serem parciais na moderação de conteúdo, ao invés de ouvirem os dois lados. E começou a reorientar seu modelo de negócios, de algo baseado em publicidade para algo mais baseado no conteúdo.

Sede do Twitter em São Francisco

Muitos dizem que a oferta de Elon Musk foi motivada apenas pelo ego ou pelo tédio de um homem rico demais. Outros apontam para a genialidade do empreendedor em série, que criou negócios extraordinariamente bem-sucedidos, e tem preocupações legítimas e sinceras com a liberdade de expressão.

Outros ainda dizem que Musk foi apenas hipócrita – fez uma defesa apaixonada da liberdade de expressão, mas baniu a conta que informava as movimentações de seu jato particular, além de contas que jornalistas que publicaram a sua localização. Posteriormente, ele disse que a prática de ‘doxxing’ (informar a localização de pessoas na internet) era potencialmente perigosa, e deveria ser proibida no Twitter.

Os cenários possíveis são múltiplos. A demissão em massa pode provocar uma queda de qualidade na plataforma, mas também pode torná-la mais lucrativa e eficiente. A inflexão no modelo de negócios pode afastar usuários e anunciantes, mas também pode tornar o modelo de negócios mais sustentável. O futuro é absolutamente imprevisível, mas certamente muito diferente do que era em 2021.

“É difícil determinar qual é seu estilo de gestão. É um pouco errático. (…) Certamente levanta dúvidas a respeito de o que está acontecendo e de para onde [a companhia] está caminhando”. (Roy Gutterman, professor no Tully Center for Free Speech).

Referências

[1] Why Twitter’s CEO Demoted Himself (https://www.nytimes.com/2010/10/31/technology/31ev.html)

[2] Statista : Leading countries based on number of Twitter users as of January 2022  (https://www.statista.com/statistics/242606/number-of-active-twitter-users-in-selected-countries/)

[3] The Trump Archive (https://www.thetrumparchive.com/)

[4] Hacker claims to have accessed Trump’s Twitter with ‘maga2020!’ password (https://www.dailydot.com/debug/trump-twitter-accessed-maga2020-password/)

[5] Permanent suspension of @realDonaldTrump (https://blog.twitter.com/en_us/topics/company/2020/suspension)

[6] Twitter Bans Trump, Removes Tweet by Iran’s Khamenei on Same Day, Sparking ‘Double Standards’ Backlash (https://www.voanews.com/a/silicon-valley-technology_twitter-bans-trump-removes-tweet-irans-khamenei-same-day-sparking-double/6200516.html)

[7] Elon Musk’s Twitter Takeover: A Timeline Of Events (https://www.searchenginejournal.com/elon-musks-twitter-takeover-a-timeline-of-events/470927/)

[8] Brutal weekend raises questions about Twitter’s future under Musk (https://thehill.com/policy/technology/3781302-brutal-weekend-raises-questions-about-twitters-future-under-musk/)

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