Zeitgeist 2022 – Parte 2: Ucranianos, Russos e Schadenfreude

Kiev e Moscou, há tempos, não tinham uma relação harmoniosa. Desde a dissolução da União Soviética, o Kremlin não enxergava a Ucrânia como um país realmente independente, mas sim como parte de sua zona de influência. Os ucranianos, por sua vez, queriam ser capazes de seguir seu próprio caminho – eventualmente até se aproximando mais da Europa ocidental.

Esse desejo de aproximação à revelia de Moscou acabou resultando em conflitos. Em 2013, Kiev repentinamente decidiu não assinar, por pressão do Kremlin, um acordo de associação entre a Ucrânia e a União Europeia que era muito popular. Os protestos que se sucederam, conhecidos como Euromaidan, resultaram na queda do governo pró-Moscou do país.

Pouco tempo depois, tropas russas capturaram lugares estratégicos na Crimeia, parte da Ucrânia. Lá, instalaram um governo pró-Moscou e promoveram um referendo pela independência e posterior anexação da região. A Crimeia foi anexada à Federação Russa em fevereiro de 2014, com imenso “apoio” popular: 97% dos votos a favor, sob olhos atentos de soldados russos portando Kalashnikovs. O movimento não foi reconhecido pela comunidade internacional, que sancionou o país.

Um membro das forças pró-Rússia retira uma bandeira da Ucrânia de mastro em Sevastopol, Crimeia.

Charge publicada em 2014, no portal Whyy.

Alguns anos depois, em 2021, o presidente russo publicou um artigo no qual defendia que os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia formavam, na essência, uma só nação; e que parte do território da Ucrânia moderna era historicamente russo. Ao mesmo tempo em que a discussão em torno dessa retórica se fortalecia, tropas militares foram se acumulando na fronteira entre os dois países. Os Estados Unidos acusaram publicamente os russos de estarem na iminência de invadir a Ucrânia. Os russos negaram.

“Não haverá guerra no que depender da federação Russa (…) Nós não queremos uma guerra”. (Sergey Lavrov, ministro de relações exteriores, cerca de um mês antes da invasão da Ucrânia)

Apesar das negativas, os russos entraram em território ucraniano em fevereiro de 2022. A partir de então, se iniciou uma guerra, com todos os horrores que são comuns a esses conflitos. Milhões de vidas foram impactadas diretamente pela invasão, que não parece estar próxima do fim.

A capacidade de resistência ucraniana e o apoio internacional aos invadidos foi notável. Muitos esperavam que os russos conseguiriam tomar o território ucraniano com relativa facilidade, até por conta de o leste do país abrigar uma significativa população russa. Não foi o que ocorreu, e o custo em vidas, de ambos os lados, foi altíssimo.


Putin em reunião com mães de soldados enviados para a guerra.

“Algumas pessoas morrem pela vodka, e seguem suas vidas sem que ninguém as note. Mas seu filho realmente viveu, e cumpriu seu objetivo. Ele não morreu em vão”. (Putin, se dirigindo a uma mãe cujo filho havia morrido na guerra)

Os europeus se viram em uma situação difícil. Grande parte da energia consumida pelo bloco vem de combustíveis fósseis, sobretudo o gás natural. Mais de 80% do gás é importado e, desta fatia, metade vem dos russos. A Alemanha, o coração industrial europeu, só se tornou esta máquina de exportação e prosperidade devido ao custo de energia ser baixo, graças ao gás natural barato vindo da Rússia. Apesar da essencialidade da parceria, ficou impossível continuar importando o gás e financiando a máquina de guerra de Putin.

“Nós éramos muito dependentes de um país – Rússia – e estamos pagando por isso agora. A Alemanha precisa mudar, e nós sabemos disso há algum tempo agora. Esse modelo de negócios realmente não é sustentável”. (Claudia Kemfert, especialista alemã em energia)

Em um raro consenso, os europeus decidiram sancionar os russos e começar a diversificar seus fornecedores de gás natural – mas não interromper completamente as importações da Rússia. Isso seria difícil demais, principalmente se acontecesse de repente.

Evolução do mix de importação de gás por parte da União Europeia. Os países em “others” são, principalmente: Noruega, Argélia, Estados Unidos, Catar e Nigéria.

O gás alternativo seria obviamente mais caro. Importar gás liquefeito dos Estados Unidos, por exemplo, é muito mais custoso do que enviar através de gasodutos. Isso acabou pressionando os custos de energia em todo o continente. Na Alemanha, por exemplo, o preço de energia no atacado chegou a mais do que dobrar em relação ao fim de 2021.

Preço médio mensal do MWh de energia por país, para o atacado.

A disparada dos preços era antecipada. Mas Berlim não queria ser julgada pelos alemães por conta desse aperto no orçamento das famílias. O Bundestag (parlamento alemão) decidiu, então, colocar de pé um plano de alívio de 200 bilhões de dólares, para amenizar o impacto no orçamento das famílias e empresas do país. Os alemães ficaram felizes. O resto dos europeus, nem tanto. Afinal, nenhum outro país teria tanto dinheiro para dispor.

“O país mais rico, o mais poderoso da União Europeia, está tentando usar essa crise para ganhar uma vantagem competitiva para seus negócios no mercado comum”. (Mateusz Morawiecki, primeiro-ministro da Polônia).

“Não podemos nos dividir de acordo com o espaço fiscal que cada um tem para manobra”. (Mario Draghi, ex-primeiro-ministro da Itália, e ex-presidente do Banco Central Europeu)

Além disso, como é sempre o caso para os europeus, um certo “ranço histórico” permeia as conversas. Os europeus passaram anos, ao longo da última década, ouvindo broncas dos alemães por conta de não saberem manejar bem as contas públicas. De repente abrir o jornal e ver os alemães sendo tão generosos, para não dizer perdulários, ao surgir a primeira crise? Pode ter soado um pouco hipócrita.

“Ao contrário de outros países, os espanhóis não gastaram mais do que podiam do ponto de vista energético”. (ministra de Energia da Espanha, Teresa Ribera)

Os países da periferia europeia parecem estar satisfeitos em poderem emprestar uma palavra do vocabulário alemão: o schadenfreude.

“Schadenfreude é um empréstimo linguístico da língua alemã para designar o sentimento de alegria ou satisfação perante o dano ou infortúnio de um terceiro”. (Wikipedia)

 

Referências

[1] Putin gets out the vote in Crimea (https://whyy.org/articles/putin-gets-out-the-vote-in-crimea/)

[2] Russian government agency reveals fraudulent nature of the Crimean referendum results  (https://www.washingtonpost.com/news/volokh-conspiracy/wp/2014/05/06/russian-government-agency-reveals-fraudulent-nature-of-the-crimean-referendum-results/)

[3] Putin tells Russian soldiers’ mothers he shares their pain (https://www.bbc.com/news/world-europe-63760278)

[4] Germany got rich on exports and cheap Russian gas. Now, it’s in trouble. (https://www.washingtonpost.com/world/2022/10/14/germany-economy-recession-energy-exports/)

[5] Infographic – Where does the EU’s gas come from? (https://www.consilium.europa.eu/en/infographics/eu-gas-supply/)

[6] Germany takes heat as E.U. leaders meet to discuss energy crisis (https://www.washingtonpost.com/world/2022/10/07/eu-energy-crisis-germany-criticism/)

[7] Schadenfreude (https://pt.wikipedia.org/wiki/Schadenfreude)

 

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