Na década de 1780, um mineral de cor negra com brilho metálico foi descoberto pela primeira vez em uma mina isolada na Boêmia, cercada por jazidas de prata. Anos mais tarde, um químico alemão isolou pela primeira vez o óxido de um elemento até então desconhecido. Inspirado pela descoberta recente do planeta Urano, ocorrida apenas oito anos antes, ele decidiu nomear o novo elemento de “urânio”.
Uraninita, também conhecida como pechblenda, mineral que contém dióxido de urânio
Com o passar dos séculos, o urânio revelou novas propriedades. Inicialmente utilizado para colorir vidros e cerâmicas com tons vibrantes de verde e amarelo, o vidro de urânio se destacou por sua fluorescência sob luz ultravioleta. Contudo, foi somente em 1930 que a descoberta da fissão nuclear elevou o urânio a um patamar de destaque, tanto na geração de energia quanto no desenvolvimento de armamentos.
Nas décadas que se seguiram, o urânio entrou em evidência no debate global. O desenvolvimento da bomba nuclear, junto às consequentes catástrofes e previsões apocalípticas, marcou a primeira vez em que a humanidade teve a capacidade de autoaniquilação, atribuindo ao urânio uma reputação notoriamente negativa. Esta percepção foi ainda mais agravada pelos desastres nucleares em Three Mile Island em 1979, Chernobyl em 1986, e, mais recentemente, Fukushima em 2011.
Embora a opinião pública frequentemente confunda os riscos da energia nuclear com os perigos associados ao desenvolvimento de armas de destruição em massa, essa associação é um tanto exagerada. Com o avanço do tempo, principalmente após o desastre de Chernobyl, as usinas atômicas melhoraram significativamente em termos de segurança, com a implementação de protocolos rigorosos para reduzir os riscos.
O incidente mais sério na era recente, o desastre de Fukushima provocado por um terremoto e um tsunami, causou apenas uma morte confirmada por radiação. O pior acidente nuclear da história, em Chernobyl, resultou em cerca de 4 mil mortes prematuras em virtude da exposição radioativa, segundo dados da ONU. Apesar de isso ser uma tragédia impensável, pesquisadores estimam que cerca de 4,5 milhões de pessoas morreram em um único ano (2019) em virtude da poluição atmosférica causada por combustíveis fósseis.
Estimativa de mortes por acidentes ou poluição, por terawatt-hora.
Ainda assim, os acontecimentos de 2011 tiveram um impacto significativo na opinião pública mundial. Naquela época, a Alemanha dependia fortemente da energia atômica, mas após o desastre, Berlim planejou desativar todas as suas usinas nucleares até 2022.
“A segurança acima de tudo. [O desastre em Fukushima] mudou também a minha posição pessoal sobre a energia atômica e os seus riscos. Eu também aprendi”. (Angela Merkel, em 2011)
Desde 2011, no entanto, o mundo mudou consideravelmente. A crescente demanda por fontes de energia limpas e renováveis reacendeu o debate sobre a energia nuclear. Diferente da energia eólica e solar, a geração atômica é limpa, consistente e relativamente econômica. A “limpeza” da matriz é um fator determinante: nos últimos 50 anos, três das cinco mais rápidas descarbonizações de matrizes elétricas foram promovidas pela adoção nuclear.
A energia nuclear pode reduzir drasticamente a intensidade em carbono das matrizes elétricas.
O renascimento da popularidade da energia atômica manifestou-se de forma inesperada: na corrida pela coroa de Miss America 2023, venceu a estudante de engenharia nuclear Grace Stanke, de 20 anos, de Wisconsin.
Grace Stanke, Miss America 2023 (e futura engenheira nuclear)
A ascensão de Grace Stanke ultrapassou fronteiras, culminando com seu convite para inaugurar a Feira de Energia Nuclear de Paris em 2023. O evento teve estreia modesta em 2014, refletindo o desinteresse global pela energia nuclear na época, mas transformou-se dramaticamente em 2023. Crescendo quase quatro vezes em tamanho, a feira atraiu 24 mil participantes e apresentou 780 exibições. A França, líder atômica da Europa com 56 reatores e famosa por estabelecer tendências, enviou uma mensagem clara: a energia nuclear está novamente em voga.
“Se não investirmos, enfrentaremos claramente um abismo, pois nossos reatores atualmente em serviço chegarão ao fim de sua vida útil entre 2040 e 2050”. (Joël Barre, chefe das iniciativas nucleares da França e conhecido pela imprensa local como ‘Monsieur Nuclear’)
Além da questão da aceitação pública, a energia nuclear enfrenta outros desafios significativos, sendo o custo um dos principais. As usinas nucleares, embora duradouras — com a usina mais antiga em operação prestes a completar 55 anos —, envolvem projetos extremamente complexos. Esses projetos exigem longos períodos de aprovação por órgãos reguladores e dependem de uma expertise que se tornou mais rara após décadas de negligência no setor. Entre 1976 e 2019, observou-se uma redução de -99,6% no custo dos módulos de geração solar, contrastando com o aumento dos custos de construção de equipamentos nucleares ao longo do tempo. A indústria nuclear ganhou notoriedade por frequentes estouros de custos e atrasos em seus projetos.
Custo de energia discriminado por diferentes matrizes, ao longo do tempo.
“Embora a cadeia de suprimentos tenha sido mantida viva na França para fins de manutenção de plantas existentes, ela se esgotou para o projeto e construção de novas plantas. Por exemplo, a soldagem necessária para manter as plantas existentes não é exatamente a mesma que é necessária para construir uma nova planta”. (Kerry Emanuel, professor do MIT)
O caso da usina nuclear Angra 3 no Brasil ilustra claramente as dificuldades associadas aos custos e complexidades de projetos nucleares. As obras, iniciadas em 1984, sofreram uma paralisação dois anos depois, sendo retomadas apenas em 2010. Interrupções subsequentes, em meio a suspeitas de corrupção, ocorreram novamente em 2015, com a retomada do projeto prevista apenas para 2022. Até o momento, o governo federal investiu R$ 7,8 bilhões na unidade e estima-se que serão necessários mais R$ 20 bilhões para concluir a construção até 2029. Recentemente, técnicos do Tribunal de Contas da União apontaram que as obras estão progredindo em um ritmo lento, o que pode afetar o cronograma previsto.
A inserção de mais capacidade nuclear na matriz energética do Brasil, a propósito, é um tema controverso. Embora o país possua reservas abundantes de urânio, sua matriz energética já é relativamente baixa em intensidade de carbono, além de contar com diversas alternativas de energia limpa. Diante do alto custo potencial de uma nova usina nuclear, surge a questão: vale realmente a pena investir nessa direção?
“O ministro quer usar Angra 3 para ter produção de urânio suficiente para pagar a conta do submarino nuclear. Essa é uma discussão que deveria acontecer no orçamento da Defesa. Quando se empurra para a conta de luz, ela torna mais caros os produtos que a indústria produz, a comida, a inflação do restaurante, e gera uma inflação maior em um momento em que a população está absolutamente estressada do ponto de vista econômico”. (Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas)
Referências
[1] The Nuclear Revival: Embracing a Clean, Reliable and Safe Source of Energy (https://www.morganstanley.com/im/en-us/individual-investor/insights/articles/nuclear-revival-esg.html)
[2] Miss Wisconsin has been crowned the winner of Miss America 2023 (https://www.missamerica.org/miss-wisconsin-has-been-crowned-the-winner-of-miss-america-2023/)
[3] The nuclear power renaissance has some way to run (https://www.ft.com/content/aaa33c5c-70e8-4f05-a45a-a45c7d2aba72
[4] Paris to Berlin: Stop fighting nuclear and help save the planet (https://www.politico.eu/article/stop-fighting-nuclear-help-save-planet-france-germany-monsieur-nuclear-emmanuel-macron-flagship-net-zero-industry-act/)
[5] Lazard’s Levelized Cost of Energy Analysis—Version 16.0 (https://www.lazard.com/media/2ozoovyg/lazards-lcoeplus-april-2023.pdf)
[6] TCU aponta ‘ritmo reduzido’ em obras de Angra 3 e governo deve decidir se vai autorizar usina (https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/11/01/tcu-aponta-ritmo-reduzido-em-obras-de-angra-3-e-governo-deve-decidir-se-vai-autorizar-usina.ghtml)
[7] Conclusão da usina nuclear Angra 3 custará mais que o orçamento de 24 capitais (https://www.cnnbrasil.com.br/economia/conclusao-da-usina-nuclear-angra-3-custara-mais-que-o-orcamento-de-24-capitais/)
