Em 1822, Pedro de Alcântara bradou o grito da independência do Brasil, às margens do Rio Ipiranga, no dia 7 de setembro. Com a declaração, o país transformou-se em monarquia, sob o comando de D. Pedro I.
O processo foi recebido de forma positiva por muitos, mas não por todos. As províncias do Pará, Bahia, Maranhão e Cisplatina mantiveram-se fiéis aos portugueses. Os vários conflitos que se sucederam para pacificar a recém-nascida nação se estenderam até 1824.
Os primeiros países a reconhecer a independência do Brasil foram os reinos do Benin e do Daomé, em 1823. Em 1825 – após uma pesada indenização de dois milhões de libras esterlinas assumida pelos brasileiros – Portugal também passou a reconhecer a independência do país.
“Manoel Alves e Lima, Embaixador do Reis do Benin e do Daomé e de mais alguns da África, certifica e faz saber que sendo encarregado da Embaixada daqueles, para saudar e fazer saber a sua Imperial majestade Dom Pedro I, Perpétuo e Constitucional Defensor do Brasil, em nome do Imperador do Benin e do Rei de Ajan que eles reconhecem a Independência deste Império do Brasil e desta corte do Rio de Janeiro”. (Carta de 1823 do embaixador do Benin e do Daomé).
O Brasil nasceu e se consolidou. Aos 50 anos da independência, em 1872, o monarca já era outro. D. Pedro II reinava desde 1840, após a abdicação de seu pai. Neste ano foi registrado o primeiro censo do Império do Brazil, após muita indignação dos senadores imperiais. Pela contagem do Segundo Reinado, o país tinha 9.930.478 habitantes, 15% dos quais eram escravizados. A província mais populosa era a das Minas Gerais (com 2 milhões), seguida por Bahia (1,4 milhão), Pernambuco (842 mil) e São Paulo (837 mil).
“Ultimamente, uma gazeta alemã, falando da Turquia, dizia que essa nação era a mais ignorante que havia na Europa porque até não sabia o número de habitantes que tinha o seu império. Por que razão, pois, não havemos de ressalvar-nos dessa pecha de ignorantes?” (Senador capixaba Cruz Jobim, em 1855)
Para além do censo, o cinquentenário foi encarado com pouco entusiasmo pelo Império. A comemoração no 7 de setembro foi simples: fizeram as paradas tradicionais e inauguraram uma estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca da independência, no Largo de São Francisco.
Estátua de José Bonifácio no Rio de Janeiro, portando o documento no qual proclamou a emancipação política do Brasil em agosto de 1822
“O largo de S. Francisco pertence a José Bonifácio. Jesus! Como é feia a estátua do patriarca da Independência! Pequenino, atarracado, socado, apertado na sua medonha sobrecasaca de ferro, José Bonifácio, naquele monumento, que foi inaugurado em priscas eras, a 7 de setembro de 1872, parece estar ali de “castigo”, como dizem, na escola, os meninos. Realmente, é um castigo aquilo. Castigo, pela fealdade da estátua, e castigo, pela serventia habitual daquela praça malfadada, que é a sede costumeira dos meetings”. (Jornalista Jayme de Távora, em 1906)
Se em 1872 as celebrações do cinquentenário foram apáticas, o centenário da independência foi recebido com muito entusiasmo. Em 1922, o Brasil já era república, e o presidente Epitácio Pessoa conseguiu transformar o evento nacional em um acontecimento internacional. O governo inaugurou uma exposição internacional no Rio de Janeiro da qual participaram 14 países de três continentes. Para marcar a ocasião, o discurso presidencial foi ouvido através da primeira transmissão oficial de rádio no país.
Selo comemorando a Expo Rio de Janeiro de 1922.
“[Em um século] passamos de 3 milhões para 30 milhões de habitantes; (…) o valor da nossa balança comercial cresceu na proporção de 20.000 para 1 milhão e hoje se expressa em 4 milhões de contos; (…) a extensão das nossas linhas férreas é de 30.000 quilômetros; (…) excede de 50 milhões a tonelagem dos navios que sulcam as águas dos nossos portos; (…) Na pecuária, ocupamos o terceiro ou quarto lugar no mundo; (…) da instrução temos cuidado com o possível desvelo: de 1907 a 1920, o aumento dos cursos elevou-se de 72% e o de alunos de 85%, o que revela o esforço do país, nos últimos anos, pelo incremento da sua instrução”. (Epitácio Pessoa, 11º presidente do Brasil, no discurso do centenário).
Cinquenta anos depois, em 1972, a celebração do sesquicentenário era feita dentro do contexto da ditadura militar brasileira, durante o governo Médici. Como era de se esperar, as celebrações foram marcadas pelo tom nacionalista. São Paulo, que inauguraria no mesmo ano o metrô, recebeu o maior desfile militar da história do país, com 18 mil homens.
A data foi marcada, no entanto, por outro evento. O regime requisitou à Portugal os restos mortais de D. Pedro I, que estavam em Lisboa. Aceito o pedido, a ossada imperial foi transladada ao Rio de Janeiro, de onde partiu para um tour em algumas capitais, além de Aparecida (por abrigar a imagem da padroeira do Brasil) e Pindamonhangaba (por ter cedido 16 elementos à Guarda de Honra de D. Pedro I). Aparentemente, o pedido contrariava o desejo póstumo do ex-monarca. Não seria a última vez que o Brasil recorreria ao corpo imperial.
“Brasileiros! Eu deixo meu coração à heroica Cidade do Porto, teatro da minha verdadeira glória, e o resto do meu despojo mortal à Cidade de Lisboa, lugar da minha nascença; porém vós possuís a relíquia mais preciosa, a emanação vivente do meu ser, meu filho!” (D. Pedro I, em carta póstuma aos brasileiros)
O caixão com os ossos de D. Pedro I no Rio de Janeiro, onde ficou exposto no Museu Nacional para visitação pública antes do tour pelo país.
Panfleto sobre o sesquicentenário.
“Para celebrar a pátria, a ditadura militar escolheu uma representação específica de D. Pedro: a do governante que tinha pulso firme e transpirava autoridade e autoritarismo. Essa era, não por acaso, a síntese da própria ditadura. Ao mesmo tempo, difundiu a ideia de que, enquanto 1822 fora a conquista da independência política, 1972 seria a conquista da independência econômica, em razão do milagre econômico brasileiro. Isso tudo transmitia à sociedade a imagem da ditadura como um desdobramento quase natural do grito do Ipiranga, um capítulo histórico tão revolucionário e necessário quanto a Independência”. (Janaina Martins Cordeiro, professora da Universidade Federal Fluminense)
Passarem-se mais cinquenta anos e chegamos a 2022, quando o Brasil celebrou o bicentenário. Mais uma vez, o país lembrou-se de quem havia bradado ao Ipiranga, através de uma médica que se tornou bastante famosa em virtude da pandemia. A Dra. Nise Yamaguchi sugeriu ao presidente da República, Jair Bolsonaro, que solicitasse o coração de D. Pedro I – sua única parte fora do Brasil – à Câmara Municipal do Porto. Depois, foi falar com a família real do Brasil.
“Eu dei o primeiro passo para tornar isto possível, inspirada pelo advogado Dr. Raul Canal, que mencionou […] que tinha esta história do coração estar no Porto, em Portugal, e o corpo aqui no Brasil, no Museu do Ipiranga. Então, falei com o Presidente Bolsonaro, Dom Bertrand de Orleans e Bragança e o Príncipe Dom Luiz Philippe de Orleans e Bragança”. (Dr. Nise Yamaguchi, em entrevista)
A diferença é que, desta vez, Portugal cedeu a relíquia apenas a título de empréstimo. Consultadas pela família real brasileira e pelo Itamaraty, a Câmara Municipal do Porto e Igreja da Lapa, guardiã da relíquia, não se opuseram a ideia, desde que fosse garantida sua segurança. Foi feito então o translado, bancado pelo governo brasileiro. Desta vez, o tour imperial foi mais curto – o coração foi recebido pelo Presidente no Palácio do Planalto, de onde seguiu para ficar exposto no Palácio Itamaraty até o dia 8 de setembro. Seguiu, depois, de volta ao Porto.
Solenidade da chegada do coração de Dom Pedro I ao Brasil
Coração imperial à parte, o evento foi celebrado de maneira mais tradicional em todo o país. O governo de São Paulo finalmente reinaugurou o Museu de Ipiranga, após nove anos nos quais esteve fechado para visitação. É lá que estão depositados os restos mortais (exceto o órgão já mencionado) do primeiro imperador. Já a capital federal celebrou o evento com seus tradicionais desfiles militares, que voltaram à Esplanada dos Ministérios após um hiato pandêmico de dois anos. Há poucas semanas das eleições, o presidente fez um discurso de tom eleitoral, apenas tangenciando o bicentenário.
Outro discurso foi mais marcante. Pela ocasião, o presidente de Portugal visitou o Brasil. Marcelo Rebelo de Sousa é neto, filho e irmão de portugueses acolhidos no Brasil, além de ser pai e avô de brasileiros. Em um belo discurso na tribuna do Senado Federal, celebrou a amizade entre brasileiros e portugueses, agradeceu aos brasileiros pelo favor de se terem proclamados independentes há duzentos anos, e lamentou os males causados pela colonização lusa – sobretudo a escravidão.
“Império Colonial este que lhes daria língua, vivências religiosas e culturais decisivas, unidade e dimensão únicas e até, transitoriamente, a originalidade de uma capital do Império fora da capital desse Império. Mas lhe custaria — e a um sem-número de africanos — escravidões, explorações e discriminações seculares tão fundas que não cessariam de um lado e do outro do Atlântico com um mero assomo histórico de Dom Pedro”. (Presidente de Portugal)
Em seu discurso, fez vivas aos dois países:
“Nós portugueses amamos profundamente no Brasil e em vós brasileiros essa alma enleante, indomável, tenazmente obstinada que vos faz diferentes, que vos faz irrepetíveis na humanidade. […] vos digo que para sempre viva o Brasil! que, para sempre, viva a fraternal amizade entre o Brasil e Portugal!” (Presidente de Portugal)